Uma História,
Muitas Memórias

Parte 1

O Laço

No dia 5 de maio de 2018, um grande laço começou a se romper. Naquele dia os alunos do Instituto Mairiporã não tinham aula, pois era um sábado como qualquer outro. Por volta das 10h, alguns de seus professores, como a Maura Jacob e o Dalmo Vilar, acompanhavam um cortejo pelas ruas do cemitério Gethsêmani, na Zona Oeste de São Paulo. Além dos seus 6 filhos e sua viúva, diversos amigos, familiares e companheiros de trabalho acompanhavam o transporte do caixão de um homem que havia falecido no dia anterior no hospital Albert Einstein. Até mesmo os músicos do Corpo Musical da PMESP e o prefeito de Mairiporã estavam entre as cerca de 50 pessoas presentes. A causa de morte tinha sido falência múltipla dos órgãos e pneumonia. Após seu enterro, alguns que levavam coroas de flores começaram a depositá-las sobre a placa que levava o seu nome: “Thomaz Melo Cruz”. Ali estava enterrado, aos 95 anos de idade, o empresário devoto de Santa Clara e São Francisco de Assis que mantinha o Instituto Mairiporã desde 1963. Oito meses depois, em 9 de janeiro de 2019, o laço se rompia de vez: o Instituto fechava as portas.

Pavões sobre os telhados atrás do refeitório do Instituto Mairiporã em 2011 — Foto: Felippe Zambrano.

Este laço, no entanto, tem duas pontas e 56 anos de extensão. Vamos começar pela ponta de dentro, que começou a ser forjada há exatamente um século. Thomaz Melo Cruz nasceu em 13 de julho de 1922, em Aracaju, Sergipe. Era filho do casal Eduardo Rodrigues da Cruz e Zuleika Melo Cruz. Na ausência de condições financeiras do pai, teve os estudos pagos por uma tia. Certa vez, durante a infância, a cidade de Thomaz Cruz foi invadida pelo bando de Lampião. Sua família fugiu assim que soube, mas como ele estava na rua, não conseguiram avisá-lo a tempo. O bando de Lampião encontrou o menino, que jogava bole de gude com amigos. Um dos cangaceiros do grupo se aproximou e falou: “Vamos jogar, quero ver se você é bom mesmo.”

 

Thomaz fez o ginásio em Salvador, na Bahia, no colégio jesuíta Antônio Vieira, e chegou a cursar um ano de Engenharia na Faculdade de Engenharia da Bahia (atual UFBA). Em 1940, um ano após o início da 2ª Guerra Mundial, o futuro empresário desiste da faculdade e se alista no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR).

 

Quando o Brasil entra na guerra, em 1942, ele funda em Salvador o chamado “Batalhão Suicida”, uma equipe encarregada de missões arriscadas, e chega a ser promovido a 2º Tenente do Exército em 1943. Entretanto, no ano seguinte ele e a família embarcam num navio a vapor Ita rumo a São Paulo, após ele abandonar a carreira militar. No novo estado, ele faz cursos técnicos de tecelagem, eletrotécnica, mecânica, fotografia e rádio.

 

Em 7 de janeiro de 1948, o sergipano se casa com Elyseth Leite, a filha do falecido dono da Pedreira Morro Grande, Elysio Teixeira Leite. A pedreira era conhecida pelos moradores das proximidades, na Freguesia do Ó, capital, por fazer um barulho estrondoso pontualmente às 11h e às 16h. Lá eram extraídas cerca de 1.000 toneladas de granito por dia. Só se podia acessar o local por uma única estrada, não asfaltada, e as pedras britadas eram transportadas em carroças puxadas por mulas. Em 1949, dois anos após a morte do sogro, Thomaz Cruz herda a direção da empresa, aos 27 anos.

 

A partir daí, o empresário e a esposa começam a expandir os negócios. Em 1952, fundam a tecelagem Santo Eduardo Tecidos de Algodão, e em 1954, a Pedreira Anhanguera; em 1959, é a vez da Pedreira Santa Clara. O casal era conhecido na região pelas atividades culturais e religiosas que promoviam para seus empregados e pessoas das redondezas. Durante esses anos, um cinema foi construído na região da Vila Morro Grande, pequeno bairro instituído ao redor da Pedreira, além de uma igreja dedicada a Santa Clara de Assis. Além disso, Thomaz e Elyseth instituíram na região a banda comunitária Corporação Musical Morro Grande. Parte dos interesses filantrópicos do empresário também incluíam incentivar grupos de escoteiros. Em novembro de 1962, ele foi agraciado com uma medalha de prata pela União dos Escoteiros do Brasil, em reconhecimento à sua ajuda ao Movimento Escoteiro.

 

No carnaval de 1963, Thomaz Cruz foi a um acampamento para escoteiros em Mairiporã, na chácara de um influente avicultor da cidade chamado Humberto Romaro. O padre da igreja de Santa Clara de Assis também estava presente com Thomaz e os escoteiros. Chovia forte e os escoteiros acabaram ficando isolados na propriedade por lá mais do que o previsto. Em meio às conversas, os presentes se lembraram de uma situação inusitada e incômoda. Acontece que os funcionários das pedreiras, sem terem onde deixar os filhos, costumavam levá-los para o trabalho, onde as crianças brincavam correndo entre os caminhões. O padre deu uma ideia: e se aquela chácara fosse usada para construir uma instituição de ensino? Thomaz Cruz achou interessante. Naquela mesma conversa, já idealizou construir o Prédio Azul e o Prédio Rosa, mas o padre estranhou:

 

“Seria uma instituição para meninos e meninas?”, perguntou o padre.

“Padre, você tem irmãos?”, perguntou de volta Thomaz.

“Sim”, ele respondeu.

“E irmãs?”

“Também.”

“Se a sua família pode ter meninos e meninas, porque o colégio não pode?”

 

E assim seria a instituição: um internato misto. Ainda naquele ano, a primeira ponta do laço era forjada. Nascia na propriedade o Instituto Mairiporã.

Capela de Santa Clara de Assis, em frente a um cafezal próximo à Pedreira Morro Grande — Autoria e data desconhecidas.
Capela de Santa Clara de Assis, em frente a um cafezal próximo à Pedreira Morro Grande — Autoria e data desconhecidas.

A Granja

Primeiros anos (1963 - 1969)

A escola começou a ser improvisada onde havia uma granja. As primeiras salas de aula, inclusive, eram galinheiros. Os primeiros alunos foram encarregados de construir as próprias carteiras e bancos, a partir de materiais da granja. No ano de inauguração, a escola atendia do 1º ao 3º ano do Primário. Como haviam entrado alunos de diferentes idades, o 1º ano foi dividido entre 1º “forte” — para alunos que já sabiam ler e escrever, e no qual se ensinava contas aritméticas, tabuada e inglês — e o 1º “fraco” — onde se aprendia a ler e escrever. “1º ano ‘fraco’ era pra quem entrava mais cedo, com 7, 8 anos”, recorda Denilse Batista, que estudou na escola entre 1963 e 1966. Lá, Denilse conheceu o futuro marido, um tratorista do Instituto que ajudou a tirar terra de locais da propriedade para fazer salas; posteriormente, os filhos do casal também estudaram na escola.

 

A arquitetura dos muros em frente à quadra coberta lembra a de uma espécie de fortaleza militar. Não foi por acaso: a estrutura foi elaborada dessa maneira para que a escola pudesse ser usada no caso de uma guerra no Brasil, o que parecia provável em meio à instabilidade política de 1963 que culminaria no golpe militar do ano seguinte.

 

A primeira diretora do Instituto Mairiporã foi Maria Aparecida Pereira, que permaneceria no cargo — seu primeiro emprego, aliás — pelas 3 décadas seguintes. Algumas das primeiras professoras foram a Dona Marilda, de Matemática, uma mulher parda, alta, de cabelos pretos compridos e olhos castanhos; a Dona Erotildes, de Geografia e Estudos Sociais, também parda e alta, de cabelos pretos curtos; a Dona Luzia, profª geral do 2º ano, parda, de cabelos castanhos claros e altura média; e a Dona Ana, de Português, branca, loira, de olhos azuis e baixa. “Todo mundo tinha a Dona Ana como mãe. Ela nunca casou, pois disse que tinha 350 filhos, que eram as crianças da escola. Ela era muito querida”, recorda Denilse.

 

Alguns dos primeiros funcionários da escola foram o Seu Gildésio, que fazia serviços gerais, de cerca de 40 anos, preto, de porte médio e que ficava de olho em quem fugia da escola; o Seu Júlio, um jardineiro branco, magro e um pouco corcunda, em torno dos 50 anos de idade, que jogava pedras em quem pisava na grama; e o maestro Arlindo, preto, forte e de cabelos crespos, que dava aulas de fanfarra.

 

Após um primeiro ano de sucesso, Thomaz Cruz decidiu que o aniversário de fundação da escola seria 11 de agosto, o dia de Santa Clara de Assis. Em 1º de janeiro de 1964, deu-se início a construção do primeiro prédio do Instituto, o Prédio Rosa, desenhado à mão pelo próprio Thomaz Cruz, que era também um arquiteto amador influenciado pelas obras do escultor e arquiteto Aleijadinho (1738 – 1814). O andar térreo da construção incluía o refeitório da escola. Na parede do refeitório, foram expostos um tijolo de cada olaria de Mairiporã. O Prédio Azul foi feito em seguida.

 

Os materiais de construção eram pagos com dinheiro ou do próprio bolso ou das suas empresas. “Saía do bolso esquerdo dele e ia pro bolso direito”, brinca João Evangelista Soares, funcionário de Thomaz Cruz entre 1967 e 2012. “Mas ele emitia cheque e pagava”, complementa. “Nada era de graça”.

 

Conforme os anos de implementação iam passando, os costumes e regras do Instituto iam sendo construídos paralelamente aos seus prédios. Já em torno de 1964 ou 1965 a escola solidificou o regime de internato misto que duraria pelas três décadas seguintes. O regime foi adotado visando suprir limitações de locomoção da época. Não apenas a escola era de difícil acesso — somente através da rodovia Fernão Dias, pra quem vinha de São Paulo —, como muitos alunos eram filhos de funcionários de Thomaz Cruz, ou seja, vinham de cidades como São Paulo (Pedreira Morro Grande), Ribeirão Pires (Pedreira Santa Clara) e Cajamar (Pedreira Anhanguera). Estes funcionários tinham direito de manter os filhos gratuitamente na escola, com moradia, alimentação e materiais escolares inclusos. Apesar disso, muitos alunos acabavam sendo retirados pelos pais da escola antes de se formarem, para que fossem trabalhar.

 

Carteirinha de um aluno em 1963 — Foto: Denilse Batista.

Dia-a-dia no Instituto

O internato misto possuía três tipos de alunos. Havia os externos, que não moravam na escola mas comumente moravam próximos a ela, e iam para lá todos os dias; os semi-internos, que moravam na escola durante a semana e iam pra casa dos pais aos fins de semana; e os internos, que voltavam para casa apenas durante as férias. A estadia podia ser prolongada em uma semana, inclusive, caso o aluno pegasse exames de segunda época, o equivalente à recuperação de hoje em dia, para que pudesse fazer as provas finais. Os dormitórios eram divididos por sexo. Os meninos dormiam no Prédio Azul, e as meninas, no Prédio Rosa. As crianças mais novas de ambos os sexos dormiam num mesmo quarto, geralmente com a presença de uma professora, no andar mais baixo do Prédio Azul.

 

Durante esses primeiros anos do Instituto, a escola ia do primeiro ano do Ensino Primário ao último ano do Ginásio — aquele, correspondente ao atual Ensino Fundamental I, e este, ao Ensino Fundamental II. As aulas eram ministradas de manhã até o fim da tarde, de modo que os internos e semi-internos acordavam às 6h, tomavam café no refeitório às 7h e se preparavam para a aula após o café. Às 8h, os externos chegavam na escola e as aulas começavam para todos. No horário de almoço, às 12h, havia os que comiam no refeitório e os que voltavam para casa para almoçar. Para os que ficavam, a comida servida na escola incluía arroz, feijão, linguiça com batata frita, carne com batata, bife, uma salada “que ninguém gostava e fazia mal pro estômago”, além de um detestável nabo, como lembra Vanderlei Alves, aluno da escola entre 1966 e 1970.

 

Por volta das 13h-14h, as aulas retornavam e iam até 17h, quando os externos iam embora. A exceção era às sextas-feiras, quando  as aulas eram encerradas às 16h, pois os pais dos semi-internos costumavam buscá-los para passar o fim de semana em casa e voltar na segunda-feira seguinte.

 

Para internos e semi-internos, a rotina do dia a dia continuava após o horário de aula. O banho era às 18h e a janta às 19h, com cardápio semelhante ao do almoço. Antes da janta, duas tradições fundamentais eram realizadas no refeitório.

 

A primeira era a do Jornal Alvorada, uma espécie de noticiário falado organizado pelos alunos. Uma equipe, formada por 4 a 6 pessoas e trocada diariamente, decidia previamente as pautas e preparava um roteiro a partir de notícias da escola e do Brasil, envolvendo política, esportes etc. A apresentação do jornal era então feita para todos os alunos presentes no refeitório, finalizada com a frase “Aqui encerramos o Jornal falado Alvorada, não esquecendo do nosso lema: trabalho e estudo para fazer o Brasil melhor!”

 

Após a apresentação, era a vez da segunda tradição, uma oração comunitária: “Uns têm e não podem. Outros podem e não têm. Nós que temos e podemos, bendizemos ao Senhor.” Só então, depois do jornal e da oração, é que a janta começava.

 

Depois da janta, por volta das 20h30, os alunos voltavam aos dormitórios e dormiam. 

 

Aos finais de semana, quando os semi-internos iam embora, quem ficava na escola podia passar os dias brincando. Queimada, futebol de campo (no único campo que havia por lá na época), futsal, basquete, taco e mão na mula estavam entre os passatempos favoritos dos internos. Natação ainda não era possível, pois a futura piscina ainda era só um buraco na terra. Outra atividade que as crianças gostavam de fazer era roubar goiabas perto de uma horta da propriedade, subindo à esquerda do prédio do refeitório. Mas era preciso tomar muito cuidado, pois o Seu Gildésio ficava vigiando a área, e quem fosse pego poderia ser castigado pela diretora, a Dona Maria, com palmatória na mão. Além disso, aos sábados a bandeira era hasteada e aos domingos havia missa na escola.

 

Durante esses primeiros anos, também foi estabelecido uma espécie de fórum judicial na escola. “Se você aprontasse algo, era necessário ir a julgamento”, conta Vanderlei. Os alunos mais velhos podiam ocupar papéis de “advogados” de defesa e acusação, e apresentavam seus argumentos para um grupo de jurados composto por 2 professores e 5 alunos. Ao fim do processo, a sentença era decidida por 3 juízes. O próprio Thomaz Cruz, que começara a cursar direito em 1968 na Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ, no Rio de Janeiro), costumava acompanhar aos julgamentos. Certa vez, num desses julgamentos, um aluno foi expulso depois de quase cegar um colega em uma briga; um grupo de alunos também foi expulso, nesse período, por espiar uma professora pelo buraco da fechadura.

 

Entre as atividades extraclasses oferecidas na escola, estavam aulas de piano, ministradas à noite, durante a semana; partidas de futebol aos sábados de manhã, entre times formados por representantes das Pedreiras, e missas ao domingo. 

 

Em 1967, a escola contava com cerca de 160 alunos e reservava 80% das vagas para filhos de funcionários de Thomaz Cruz e 20% para alunos das redondezas. Dois anos depois, em 1969, o estatuto da escola foi oficializado. O documento descreve o Instituto como “uma pessoa jurídica autônoma e se dedicará ao bem cristão, moral, social, econômico, educacional e sanitário de crianças de ambos os sexos, preferivelmente sem recursos, até a idade de dezoito anos, de acordo com os princípios da livre empresa e orientação para o trabalho.”

 

Nele também consta que a escola deveria promover: “a) — abrigo de menores necessitados de amparo material, moral e educacional; b) — instrução primária, ginasial e profissional sob o regime de internato gratuito, ou externato; e c) — a criação de museus e objetivos correlatos, atividades esportivas e recreativas-culturais, estimulando o civismo”. Além disso, determinava que as vagas da escola seriam dadas a “filhos de operários, preferencialmente das empresas: Pedreira Morro Grande S. A., Pedreira Anhanguera S. A., Pedreira Santa Clara S. A., Santo Eduardo Tecidos de Algodão S. A. e Concreto Redimix de São Paulo S. A.”

 

A década de 1960 estava acabando. Os primeiros anos da instituição anos serviram para ir moldando, à maneira de esboço, o laço cuja ponta de dentro fora forjada em 1963. No entanto, em 1970 um acontecimento fundamental viria a dar traços mais firmes ao que o Instituto Mairiporã se tornaria, fortalecendo e estreitando este laço e se tornando uma tradição absoluta da escola. Tratava-se da primeira Feira de Ciências.

Fotografias tiradas no Instituto Mairiporã entre 1963 e 1970. — Foto: Nivaldo Santana.

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